Da Sombra à Luz: a Libertação de Margarete Olsson

Margarete Olsson viveu uma infância violenta e dois casamentos abusivos. Voltou para escola aos 42 anos, graduou-se em psicologia aos 49, e hoje é uma profissional realizada e inspiradora.

Da Sombra à Luz: a Libertação de Margarete Olsson

-Margarete Olsson!

Aplausos e gritos efusivos vindo dos familiares, colegas e professores, tomam conta do auditório. Ela se levanta e os aplausos aumentam. Ela agradece com a cabeça e segue para o palco. Nesses poucos passos, volta à infância e se lembra do caminho para a primeira escola.

Frequentar a escola rural é um momento de alegria e lazer. Quer aprender e gosta de conviver com colegas e professores. Ali, no ambiente escolar, sonha com um futuro melhor do que a realidade que vive com seus pais e irmãos.

O acolhimento das professoras contrasta com a rigidez de seu pai. Nascido na Argentina, ele assumiu uma nova identidade no interior do Paraná para fugir do exército portenho. Muito duro, usa da violência com a esposa e com os filhos. Ela tem na educação uma porta de saída deste mundo.

Sua mãe faz o possível para amenizar as dores desse mundo. Quando o marido sai para trabalhar, ela prepara suspiro, que a filha chama de coisa gostosa. Esse pequeno ritual delas se transforma em um oásis naquele deserto de violência.

Seu pai coloca fim ao seu sonho. As meninas não precisam estudar nem trabalhar, pois o marido vai governar e sustentar. Com essa crença, ele a tira da escola. Esse dia, o mais triste de sua infância, marca o fim do seu sonho de escapar daquela vida pela educação.

Por trinta anos ela vive como uma mulher pobre e sem estudos. Aos quinze anos, enfrenta seu pai e se torna vendedora em uma loja de Foz do Iguaçu. Bonita, encanta o irmão do patrão, um rapaz de vinte e um anos, e começam a namorar. Vendo nele uma nova chance, aceita a proposta de casamento.

A ilusão de uma nova vida dura pouco. O casal muda-se para Natal, ele a impede de trabalhar, bebe, joga e a humilha pela sua falta de educação e cultura. Nem para puta você serve, é inútil, não tem cultura e nem estudos - essa frase e variações dela passam a fazer parte da sua rotina.

As duas filhas nascem e a rotina de violência e humilhação não muda. Várias de suas vizinhas trabalham e isso a estimula a voltar ao mercado. Seu marido é taxativo: mulher minha não trabalha, não sou marido corno. Nas brigas, dizia que iria se separar dele e ouvia o mesmo discurso: você não serve nem para puta, se me largar vai morrer de fome.

Aos vinte e seis anos ela dá um basta e se separa. Sem condições de sustentar as filhas, as deixa com a família dele pelos próximos dois anos.

Aos vinte e seis anos, muito bonita, recém separada e fiel da Igreja Adventista, conhece um rapaz, amigo de amigos. Ele é cantor e ela o insere no seu rol de amigos. Ele começa a cantar na igreja. Um doce de pessoa, respeitoso com ela e com as filhas. Após dois anos de namoro, encantada com aquele homem maravilhoso, se casa com ele.

Para ajudar na carreira dele, os amigos da igreja apoiam o marido de Margarete na gravação de um CD e o contratam para apresentações. Charmoso e bem articulado, ele usa essas oportunidades e aplica pequenos golpes. Em pouco tempo faz com que ela perca todas as amizades.

Em busca de melhores oportunidades para a carreira dele, mudam-se para São Paulo. O marido a trata com muita agressividade e a impede de fazer coisas básicas, como comprar roupas, por exemplo. É ele quem faz isso, a tirando qualquer direito de escolha.

A violência física começa a crescer. Murros na parede, apertões no pescoço, empurrões. Quando ela decide se separar, a reação dele é quebrar a porta do guarda roupas e tentar agredi-la com isso. Ela reage e ameaça contar a seus irmãos. Ele, violento, mas não bobo, recua.

Os quarenta anos a encontram novamente solteira, com as filhas já jovens adultas. Sem formação, sem profissão, e sem saber lidar com coisas simples, como usar um caixa eletrônico ou operar um computador, consegue um emprego em uma metalúrgica de Guarulhos. Foram dois anos de serviço pesado na limpeza, interrompidos por um elogio.

Limpando o chão com o rodo, um dos gestores, de terno, engravatado, passa por ela e faz o que ele considerou um grande elogio: Margarete, você faz o seu serviço tão bem feito que parece que nasceu para isso. Não! Não nasci para isso! Eu leio! Eu leio muito! Eu quero mais do que isso! O grito silencioso em seu pensamento se materializa no pedido de demissão.

Sem emprego e sem renda, dependendo das filhas, Margarete desabafa com seu irmão. Ela se sente sem forças e não sabe o que fazer da vida. Estou te mandando uma passagem, você vem morar com a gente! Dias depois, Margarete desembarca em Porto Velho para viver com o irmão e a cunhada.

Além de um lar, ela encontra uma cultura de muito estudo na nova casa. E incentivada pela cunhada, decide retomar os estudos. Trinta anos depois, ela está de volta ao ambiente escolar. Emocionada, ela se sente criança de novo, quando compra o estojo verde com bolinhas brancas, marco dessa nova fase.

Sua cunhada demite a empregada doméstica da família e Margarete pede para assumir o lugar dela. Sua nova rotina ainda é pesada. Durante o dia, ela faz o trabalho doméstico na casa do irmão. No final da tarde, faz as tarefas da escola. E à noite, frequenta as aulas do supletivo.

A alegria que sente ao ter em mãos o diploma do Ensino Médio está guardada para sempre em seu coração. E com aquele objetivo alcançado, vem a pergunta: qual o próximo? A resposta era óbvia, mas um curso superior parece um sonho distante.

Margarete muda-se para Ariquemes, para morar com sua irmã. Lá faz amizade com uma médica, proprietária de uma clínica na cidade. Ela conta à nova amiga seu sonho de infância de cursar Direito. A amiga faz o papel de anjo: a inscreve no vestibular, paga a taxa e não lhe dá chance de desistir.

Aprovada na segunda opção, para o curso de Psicologia das Faculdades Associadas de Ariquemes, um novo capítulo de sua vida começa. O próximo desafio é pagar a mensalidade da faculdade particular. O primeiro ano é garantido pela amiga médica.

Ela recorre às vendas de Natura e outras coisas para pagar as mensalidades do segundo e do terceiro ano. E no quarto ano ela consegue o FIES. Ainda conta com a ajuda dos colegas, seja comprando seus produtos, seja ajudando com dinheiro para o lanche. Quando ia fazer os pagamentos na secretaria, várias vezes ouviu das atendentes que preferiam não precisar receber dela, cientes que eram de sua história.

A principal dificuldade de Margarete é lidar com as demandas acadêmicas de um curso superior presencial, tradicional, raiz. Os professores apoiam, mas não alisam. Coisas simples para seus colegas são muito difíceis para ela, como usar um computador ou mesmo escrever corretamente.

Os colegas ajudam. Os professores incentivam. E ela avança, aos poucos, com sobressaltos aqui e acolá. Pensa em desistir e chega até a verbalizar isso com uma das professoras, que a demove dessa ideia.

Ela é a aluna mais velha da turma e tem colegas mais novos que suas filhas. A rotina da faculdade é dura, puxada, principalmente para ela que precisa lidar com o que lhe foi negado na infância. O curso supletivo não é capaz de suprir isso.

Um momento crítico é quando o nascimento da neta em São Paulo coincide com o período de provas. Em uma decisão difícil, ela opta por fazer as provas e recebe críticas da família por isso. Isso dói. E ela usa a dor como combustível. Já está acostumada a fazer isso desde a infância.

Ela conclui todos os requisitos acadêmicos para a conclusão do curso. Entre ela e o tão sonhado diploma, só a cerimônia de colação de grau. E ela chega. Auditório lotado. Sua mãe está lá. Sua irmã está lá. Seus irmãos estão lá. E eles fazem muito barulho quando o nome dela é chamado pelo cerimonialista.

-Margarete Olsson!

Ela caminha pelo palco, cumprimentando cada professor da mesa. Eles a abraçam com muito carinho. A conquista dela é deles também. De todos eles. Ela recebe o canudo e o ergue acima da cabeça. Celebra com muita alegria. É a maior vitória de sua história.

O abraço com sua mãe é demorado. Ela é a primeira filha a ter um curso superior. A celebração com os familiares é emocionante. Quando ela vê o diploma, sente-se livre.

Liberdade!

E ela se liberta de seu pai. Faz as pazes com ele. Não pôde fazer isso quando de sua passagem, impedida pelo primeiro marido de visitá-lo em seus dias finais da batalha com o câncer. A culpa que imputou a ele pela sua condição morre ali, quando ela vê o diploma.

Diploma em mãos, ela volta para São Paulo. Seu objetivo é fazer uma pós-graduação e, com isso, tentar tirar a diferença de formação para os profissionais paulistas. Para sua surpresa, ao lidar com os colegas na pós, percebe que sua formação foi tão boa ou melhor que a deles.

Com a coragem que lhe é peculiar, abre sua agenda e inicia os atendimentos. Apesar das dificuldades iniciais, ela consegue se estabelecer e formar sua clientela.

Estamos em 2024. Margarete tem a agenda lotada, é motivo de orgulho para suas filhas e uma das netas quer seguir os passos da avó. Para ela, esse é o reconhecimento que valida todo seu esforço.

Casada pela terceira vez, ela e o marido dividem o plano de se tornarem nômades digitais em alguns anos e conhecerem o mundo. E não há dúvidas que assim eles farão.